domingo, 11 de janeiro de 2015

030. A TELEGRAFIA TRADICIONAL NÃO-ELÉTRICA E O LUSO CONTRIBUTO DE FRANCISCO ANTÓNIO CIERA




A uso da telegrafia não-elétrica perde-se no tempo. Os sinais de gritos, fumos, fogos, tambores, búzios, trompas, etc., datam possivelmente dos princípios da organização social de grupos e tribos. Com o evoluir das sociedades foram-se aprimorando e inventando códigos de comunicação e equipamentos capazes de receber e transmitir sinais de e para grandes distâncias. Citadas frequentemente por: telegrafia visual, telegrafia aérea, telegrafia óptica e telegrafia semafórica; esta telegrafia não-elétrica permite enviar mensagens à distância, através do espaço aéreo visível, daí a adjetivação de telegrafia visual.

Distingue-se do correio clássico/tradicional porque este implica o transporte das mensagens em suportes físicos (cartas, bilhetes ou quaisquer objetos informativos) por terra, ar ou mar. A telegrafia não-elétrica baseia-se, pois, na transmissão e receção de sons (ex.: trompas, tambores); luzes (ex.: fogos, antigos faróis) e imagens de objetos (ex.: balões, bandeirolas, bandeiras, galhardetes, abertura e fecho de palhetas ou persianas) desde que configurem sinais compreensíveis para quem transmite e para quem recebe.

Esta configuração de sinais assenta em códigos de linguagem. O código mais conhecido foi o de Samuel Finley Breese Morse, utilizado sobretudo na telegrafia elétrica mas também na telegrafia tradicional não-elétrica na forma de sinais luminosos derivados do sol – isto é, na heliografia com auxílio de espelhos e instrumentos de ótica. O código de Morse foi ainda utilizado em sistemas homográficos, lanternas de sinais, semáforos, bandeirolas. Outros códigos muito utilizados foram o de bandeiras e galhardetes, especialmente o CIS (Código Internacional de Sinais); códigos de faróis; código de Chappe, francês; código de Edelcrantz, sueco; código de balões ou bolas, inglês; código de Francisco António Ciera, português, a que o autor deu o nome de "taboas telegraphicas".

 A telegrafia não-elétrica também tem sido adjetivada de óptica (telegrafia óptica), quando os divulgadores ou utilizadores pensam em termos dos equipamentos óticos, envolvendo telescópios, óculos ou binóculos de aumento que permitem observar os sinais ao longe. As distâncias entre postos telegráficos podem atingir dezenas de quilómetros em cada salto de emissão/receção (1). Outras vezes esta telegrafia é adjetivada de aérea, visual  e semafórica, quando é pensada em termos de sinais transmitidos pelo espaço aéreo visível. Ex. a visão de sinais com: balões, bandeirolas, bandeiras, galhardetes, fogos, abertura e fecho de obturadores. Para obviar a estas confusões de designações diferentes para a mesma coisa, ou semelhante, sugiro a seguinte classificação para a telegrafia tradicional não-elétrica subdividindo-se em:

 1 – Telegrafia visual simples
       com: fumos, fogos, búzios, trompas ... ,
       sem auxílio de instrumentos de ampliação dos sinais;

 2 – Telegrafia visual ampliada com instrumentos de ótica, isto é,
       telégrafos: do francês Claude Chappe; do sueco  Abraham
       Edelcrantz e do português Francisco Ciera.

A caraterística mais saliente desta telegrafia assenta nos processos manuais e mecânicos, não-elétricos.

Em finais do século XVIII e século XIX aparecem os telégrafos não-elétricos em linhas de comunicação que alcançam, por vezes, centenas de quilómetros. Os telégrafos modelo Chappe (dos irmãos gauleses Chappe) foram utilizados na defesa e na guerra; na administração pública, entre altos funcionários e a família real.

Mais ou menos contemporâneos são os telégrafos suecos modelo de Abraham Edelcrantz (2) e os ingleses, denominados telégrafos de balões ou de bolas baseados, em nosso entender, em equipamentos e códigos complexos para poderem transmitir mensagens rápidas. Estes telégrafos (de Chappe, de Edelcrantz e de balões) não se adequavam facilmente ao serviço de exércitos em campanha. O relativo défice de utilidade do modelo francês contribuiu, em nosso entender, para a derrota das tropas napoleónicas na Guerra Peninsular; porquanto não temos conhecimento de qualquer informação sobre o uso deste telégrafo de Chappe em Portugal. A instalação e o porte deste telégrafo a milhares de quilómetros era tarefa ciclópica. O mesmo não aconteceu do lado luso-inglês na 3ª invasão a Portugal onde, a par dos telégrafos de balões, foram instalados os modelos lusos inovados por Francisco Ciera. Pela primeira vez, nas Linhas de Torres, a tecnologia comunicacional entre os dois Exércitos marca uma diferença assinalável.

 É aqui que entra a contribuição lusa de Francisco António Ciera.

 Francisco António Ciera, filho de Miguel António Ciera  (Michaelis Antonii Cierae) (3) herdou os conhecimentos paternos na área da ciência e matemática. Ciera pai foi professor no Colégio dos Nobres, em Lisboa, onde lecionou matemática. Integrou a Reforma da Universidade de Coimbra, implementada pelo marquês de Pombal, onde foi docente nas cadeiras de Astronomia e Geometria. Chamado pelo rei D. José I para delimitar parcelas do território do Brasil, onde havia indefinições de fronteiras; o trabalho de Ciera pai terá sido um dos contributos para o alargamento do território brasileiro. É contudo curial referir o nome de Pedro Folque (4) associado a Ciera pai e Ciera filho em trabalhos de Triangulação Geral e Levantamento da Carta Corográfica do Reino, bem como aos trabalhos de instalação da telegrafia não-elétrica com os modelos Ciera.

 Quanto a Ciera filho (Francisco António), além da participação na telegrafia com inovações em dois telégrafos e invenção de um terceiro, exerceu as funções de primeiro Diretor do Corpo Telegráfico Português, criado em 1810. Colaborador na investigação e aulas de Astronomia na Academia Real da Marinha, na Régia Oficina Tipográfica e Geográfica para o Desenho, Gravura e Impressão das Cartas; reconhecido pela qualidade dos seus trabalhos e como sócio da Real Academia das Ciências. Ainda em finais do século XVIII colaborou na Triangulação Geral do Reino com vista ao aperfeiçoamento do estudo da forma da Terra e estratégias de defesa.

 Em relação aos instrumentos de ótica, de que vários telégrafos não-elétricos se servem, não há informação de quando é que se utilizaram sistematicamente as primeiras lentes. Contudo chega-nos a informação de que no século VIII a.C. já se fazia uso de cristais naturais que permitiam ampliar a visão. Muito tempo se passou até que por volta do século XIII se começam a utilizar cristais moldados/lapidados permitindo aumentar a visão e nitidez dos objetos usados como sinais. Daí aos telescópios (do grego "tele" = longe + “scopio” = observar) por vezes também designados teodolitos, monóculos, óculos, foi um lento e constante aperfeiçoamento. Em 1608, aparece o nome do neerlandês Hans Lippershey que se tornou fabricante de lentes, na altura concebidas com fins bélicos, antes mesmo da adoção à astronomia e às comunicações. Logo no ano seguinte (1609) aparece o nome de Galileu Galilei utilizando estes instrumentos visuais adotados à astronomia. Daí em diante o uso e aperfeiçoamento das lentes de aumento tem sido uma realidade. No século XVIII esta tecnologia usada para ver/espreitar/espiar ao longe, desperta curiosidades. Mas é o Poder, em primeiro lugar, que se assenhoreia desta ferramenta. Em França surgem os telégrafos visuais (não-elétricos) dos irmãos Chappe auxiliados pela ótica.

 Francisco António Ciera teve conhecimento destes equipamentos e, em breve, procedeu a inovações nos telégrafos de palhetas, também ditos telégrafos de postigos ou de persianas. Estes modelos de telégrafo não-elétricos foram os mais utilizados em Portugal. Dos telégrafos atribuídos a Ciera, dois foram por si inovados com sucesso e um terceiro (o telégrafo de ponteiro e mostrador) foi sua invenção. Dos três telégrafos:

1- de palhetas, 2- de ponteiro e 3 - de balões ou bolas;

relevamos o de palhetas, baseado no modelo sueco e que Ciera filho modificou de modo a torná-lo mais leve, simples de utilizar e com mais possibilidades de transmissão da informação. Simultaneamente Ciera filho inventou o novo código - "taboas telegraphicas" baseado apenas em:

8 sinais: números 1 a 6, mais o ponto e o sinal de igual;

ao passo que o modelo inglês implicava 64 sinais, o francês 256 e o sueco 1024; logo, menos práticos. Além da facilidade de transmitir e da diminuição do volume e peso do seu telégrafo, o equipamento de Ciera permitia praticamente a transmissão de informação até ao infinito, apenas com a combinação dos referidos 8 sinais. Não admira, pois, que o duque de Wellington (5) tenha ficado impressionado, incentivando a adoção dos telégrafos portugueses de Ciera por altura da 3ª invasão francesa.
Ainda em relação ao telégrafo de balões, baseado no modelo inglês, Ciera elimina-lhe vários balões, roldanas e cordas e aplica-lhe também o seu código simplificado de apenas 8 sinais. Por tão relevante serviço Ciera filho foi reconhecido no seu tempo; e em 2013 e 2014 foi homenageado em Torres Vedras e concelhos por onde passam as Linhas de Torres, a fim de evocar, respetivamente, os 250 anos do seu nascimento e os 200 da sua morte. Releva-se que o próprio Reino Unido se fez representar em Portugal nestes eventos de homenagem a Francisco Ciera. A autarquia de Torres Vedras dedicou-lhe em 2014 uma placa toponímica, revelando uma ação de justa cidadania.

Outras evocações a Ciera filho e seu contributo no desenvolvimento da telegrafia, já haviam sido feitas pela Comissão da História das Transmissões; Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar; e Fundação Portuguesa das Comunicações.       

 Notas:
(1) Regra geral a distância entre postos de telegrafia visual anda à volta dos 18 km ou mais, como no troço de Almeirim a Montargil atingindo neste caso um salto de 40 km. Deste modo os monóculos (também com a designação de telescópios) alcançavam 30 a 40 vezes a vista “desarmada”. 
(2) O telégrafo de Edelcrantz foi desenvolvido no âmbito da defesa militar sueca em relação aos conflitos com a Rússia.
(3) Miguel António Ciera, cidadão do Piemonte, território que faz parte da atual Itália. Especialista em delimitação de fronteiras, esteve ao serviço do Reino de Portugal.
(4) Pedro Folque nasceu na Catalunha. Muito jovem veio para Portugal, onde estudou e fez uma extensa carreira militar, chegando ao posto de Tenente-Coronel e Comandante-Geral da Engenharia. Teve uma vida muito longa de trabalho, apenas se aposentando depois dos 100 anos, tendo falecido aos 104. Foi colaborador especial da família Ciera e deixou como sucessor o seu filho Filipe de Sousa Folque, tendo este nascido em Portalegre, 1800. Fez carreira brilhante na Arma de Engenharia, em topografia e cartografia. Foi uma referência em trabalhos realizados posteriormente por Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Gago Coutinho.
(5) Arthur Wellesley duque de Wellington foi figura proeminente do Exército Britânico. Teve um papel relevante na luta contra as invasões francesas, em especial na Península Ibérica com destaque para as Linhas de Torres, tendo embora, aproveitado os estudos prévios do terreno executados por José Maria das Neves Costa (1774-1841) natural de Carnide – Lisboa. Na posse dos estudos de Neves Costa, consta que o duque de Wellington terá afastado o militar português de colaborações futuras, apagando assim a autoria e visibilidade que seriam devidas não só ao próprio Neves Costa, como à Academia de Marinha, à Arma de Infantaria e ao Arquivo Militar por onde passara o distinto investigador do terreno, topógrafo e cartógrafo com relevo para a Carta Militar da defesa de Lisboa. Esta Carta foi oferecida por Neves Costa ao Marechal Beresford que, por sua vez, a transmitiu ao 1º duque de Wellington, desenvolvendo com ela as Linhas de Torres.

 Referências bibliográficas:

-ANCIÃES, Alfredo Ramos - Dossier de telegrafia ótica/visual in FPC Fundação Portuguesa das Comunicações: Património Museológico de Telecomunicações, 1997-2006;

--------------Seminário de investigação e organização da telegrafia do Museu dos CTT. Lisboa: Edição pessoal -  Seminário de Biblioteconomia e Arquivologia. Lisboa: UAL “Luís de Camões”, 1987/1988, 85 pp.

--------------Nova tabela de classificação do património museológico de telecomunicações. Lisboa: FPC - Fundação Portuguesa das Comunicações/Património Museológico de Telecomunicações, 1998

-BARROS, Guilhermino Augusto de – Relatório do Director Geral dos Correios, Telegraphos, Pharoes e Semaphoros relativo ao anno de 1889 precedido pela continuação da Historia dos Correios até ao fim de 1888 e uma memoria historica acerca da telegraphia visual, electrica, terrestre, maritima, telephonica e semaphorica, desde o seu estabelecimento em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1891

-FIRMINO, Maria da Glória Pires; Engenheiros fundadores/colaboradores do Grupo de Amigos do Museu dos CTT; JÚNIOR, E.A.P. Miguel; GUIMARÃES, Maria de Lurdes P. C.;  ANCIÃES, Alfredo Ramos - Chave de classificação do Património Museológico de Telecomunicações. Lisboa:  Museu dos CTT, 1985

-LUNA, Isabel; SOUSA, Ana Catarina de; LEAL, Rui Sá (colaboração) - Telegrafia visual na Guerra Peninsular 1807-1814. Mafra: Câmara Municipal de Mafra Boletim Cultural 2008, pp. 67-141

-ROIG, Sebastián Olivé – Historia de la telegrafia óptica en España. Madrid: Ministério de Transporte, Turismo y Comunicaciones: Secretaria General de Comunicaciones, 1990

-ROLLO; Maria Fernanda F. Garcia;  PIRES, Ana Paula; QUEIRÓS, Maria Inês P. S. da Costa;  TAVARES, João - História das telecomunicações. Da Direcção Geral dos Telégrafos do Reino à Portugal Telecom. Lisboa: Portugal Telecom; Tinta da China, 2009

-VARÃO, Isabel – Os telégrafos antes do telégrafo: Apontamentos. Códice, nº 10. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2002, p. 55-62;

--------------Telegrafia visual: Uma tecnologia do séc. XIX? Códice, nº 12. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2003, p. 54-65.

  Referências bibliográficas em linha, acedidas em 6.1.2015:

-250 Aniversário do Nascimento de Francisco Ciera - http://www.linhasdetorresvedras.com/noticias/?id=61 


-Bicentenário do Corpo Telegráfico 1810-2010 / LIMA, Major-General António Luís Pedroso de; AFONSO, Coronel Aniceto; ALVES, Major-General Carlos; DIAS, Coronel Jorge Costa; Comissão da História das Transmissões; Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar -   http://www.exercito.pt/historiatm/Documentos/Livros/Bicenten%C3%A1rio%20do%20Corpo%20Telegr%C3%A1fico%201820-2010.pdf

-Brigadeiro (O) José Maria das Neves Costa. Patrono do Instituto Geográfico do Exército -  http://www.igeoe.pt/downloads/file45_pt.pdf

-Divulgação do telescópio - http://pt.wikipedia.org/wiki/Telesc%C3%B3pio;

-Francisco António Ciera (1763-1814) / DIAS, Maria Helena; Instituto Camões -  http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p48.html

-História das lentes amplificadoras da visão - http://pt.wikipedia.org/wiki/Lente

-História das transmissões militares / AFONSO, Coronel Aniceto; SILVA, 1Sargento et al.  https://historiadastransmissoes.wordpress.com/category/cv-do-rtm/

-José Maria das Neves Costa e as Linhas de Torres / GERALDO, Coronel José Custódio Madaleno -  http://www.revistamilitar.pt/artigo.php?art_id=530

-Miguel António Ciera (Michaelis Antonii Cierae) / REIS, Fernando; Instituto Camões - http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p46.html

-Optical (the) Telegraph - http://www.neatorama.com/2012/03/25/the-optical-telegraph/ 

-Telegraph (the) of Claude Chappe – an optical telecommunication network for the XVIIIth Century - http://www.ieeeghn.org/wiki/images/1/17/Dilhac.pdf


-Telégrafo de persianas / VIEIRA, José Manuel d’Oliveira - http://coisasdeabrantes.blogspot.pt/2011/03/abrantes-militar-telegrafo.html;






Sem comentários:

Enviar um comentário