terça-feira, 30 de dezembro de 2014

28. CARTA DE VIAGEM



À TERRA DOS SULTÕES
 

“Comendo alegremente, perguntavam,

Pela Arábica língua, donde vinham,

Quem eram, de que terra, que buscavam,

Ou que partes do mar corrido tinham?

Os fortes Lusitanos lhes tornavam

As discretas respostas que convinham:

«Os Portugueses somos do Ocidente,

Imos buscando as terras do Oriente” (1)

 
O Estado da Turquia tem cerca de nove vezes a superfície de Portugal e a sua população ultrapassa os 75 milhões de vidas humanas. Herdeiro dos restos do Império Otomano, o território apresenta-se, grosso-modo, numa grande península entre os Mares do Norte, Mediterrâneo e Egeu, pertencendo a maior parte ao continente asiático e uma pequena parte ao europeu. Não obstante esta situação geográfica e a distância que separa a Turquia de Portugal, a sua população é fisionómica e culturalmente parecida com a nossa.  

Devo dizer que nesta minha viagem, entre Istambul e a costa do Egeu, nomeadamente na cidade arqueológica grego-romana de Éfeso (2), Bodrum (3) e em algumas zonas rurais adjacentes, a população com quem entro em contacto diz-me que o povo turco é parecido com o português.

Depois de uma pequena conversa com as pessoas confesso que fico  com pena de não falar abertamente sobre as antigas relações dos portugueses com o povo turco mas o bom senso diz-me que devo ter alguma contenção na linguagem. Com efeito, desde a I viagem de Vasco da Gama à Índia e durante muitos anos tivemos que combater o poderio turco no Oriente. O estereótipo que muitas vezes fazemos deste povo como sendo de pele escura, com bigode e no que consta à indumentária muito diferente da nossa, não corresponde à realidade. Não vejo muita diferença.

Em Istambul questionei um Guia e um Gerente de Hotel sobre o modo de vestir ligado ao Islamismo e eles me confirmaram que são poucos os homens que se apresentam com os trajes típicos associados aos muçulmanos. Os que se encontram com traje a rigor, regra geral não são Turcos, embora possa haver um ou outro caso de cidadãos nacionais. Assim, foram caindo alguns clichês que eu trazia e inclusivamente quanto à segurança. Neste aspeto a ideia inicial era de alguma perigosidade por ser estrangeiro e por ser cristão mas, de facto, além de ser confundido com os turcos, encontrei simpatia e tolerância.

Ainda a respeito da religião pergunto ao Guia local se está obrigado a orar a horas certas quando é feita a chamada pelos minaretes das mesquitas. Ele responde-me que tem uma obrigação apenas moral; que ora por convicção e se não puder fazê-lo, às horas certas, compensa posteriormente. Entre os sítios e monumentos mais emblemáticos que visito destaco um passeio pelo Bósforo, entre o Mares de Mármara e o Negro, onde vejo uma miríade de embarcações e pescadores nas margens dos  canais do Bósforo e do Corno de Ouro. Nestas mesmas margens os palácios, mesquitas e minaretes sucedem-se e ainda se veem casas típicas otomanas em madeira.

A Hagia Sofia corresponde à antiga Igreja/Basílica de Santa Sofia. Os Lusíadas e a biblioteca que consulto dizem-me que a 29 de Maio de 1453 – dia da queda de Constantinopla, o conquistador Maomé II estipula que este património cristão passa à função de Mesquita. Dizem-me também que Maomé II foi tolerante para com os vencidos que ficaram nesta velha Roma do Oriente e que foi nomeado um Patriarca para os Cristãos.

Hoje em dia Haghia Sophia está dotada para cumprir a função museológica, pela monumentalidade da construção e pelas sepulturas dos Sultões e familiares. Junto a estes túmulos dos Sultões da época de Camões lembro a História bélica entre portugueses e turcos. Alguns destes turcos aqui sepultados apoiaram as guerras e escaramuças ao tempo da expansão de Portugal. Visto hoje, à distância, lembro que ambos os povos fizeram História relacionada com a expansão e os negócios das especiarias. Aqui recordo também que turcos e, especialmente, portugueses foram precursores no processo de globalização, na difusão de culturas e de patrimónios.

Volto ainda a Haghia Sophia, sob vários aspetos, monumento digno de ser visitado. Com quase 1.500 anos de existência ajuda a compreender o mundo e as pessoas. Data do tempo do Imperador cristão Justiniano, isto é, do ano 537. Os seus alicerces são ainda mais antigos, alguns datados do tempo do Imperador Constantino (272-337) o primeiro dos Imperadores a converter-se ao Cristianismo. Aqui  mandou construir uma Igreja entretanto destruída mas onde posso ainda ver os alicerces arqueológicos. Deste modo temos neste local um conjunto edificado dos mais antigos do cristianismo acrescentado com elementos do islamismo.   

Quase em frente e não menos monumental encontra-se a Mesquita Azul. Esta data de 1616. A grande Praça de Sultanahmet onde se situam a Haghia Sophia e a Mesquita Azul coincide, se não no todo, pelo menos em parte com o antigo Hipódromo Romano, construído no ano 200. Neste espaço posso ainda ver, entre outros monumentos, o obelisco egípcio que data de 1500 a. C. construído previamente na cidade de Luxor e transferido pelo Imperador Constantino para Constantinopla. De 479 a. C. é a coluna serpentina, que foi transferida de Delfos (antiga cidade grega).

Quanto à Turquia independente e moderna, esta data de 1923, na sequência da I Guerra Mundial, bem como da criação da Sociedade das Nações e da queda do Império Turco Otomano. O principal arauto e realizador desta Turquia moderna foi o Presidente Atatürk que inteligentemente juntou os restos do Império Otomano, construindo um grande país, cioso da preservação das suas origens, memórias e patrimónios, simultaneamente virado para os negócios e o turismo.

Após as suas reformas, a República Islâmica da Turquia baseia-se em princípios democráticos, constitucionais e seculares. Com esta secularização parece que nem todos os Turcos entram diariamente nas Mesquitas, nem são obrigados a orar 5 vezes por dia, todavia consta que o Estado Turco tem um organismo de “assuntos religiosos que visa orientar a moral das famílias” e salvaguardar os princípios do Islão” (4).

Em termos de respeito e defesa pela natureza ambiental e animal posso constatar que vi pouquíssima zona ardida, em comparação com os países mediterrânicos. Isso parece indicar que não há pirómanos na Turquia e também que as matas são mais limpas do que entre nós, em Portugal. Quanto à natureza animal, em Istambul, por exemplo, cidade com cerca de 13 milhões de habitantes vi imensos felinos pelas ruas mas, de maneira geral, bem tratados. À porta das casas, das lojas e bazares, os proprietários alimentam os seus gatos e os que andam pelas ruas.

Os felinos passeiam-se e dormitam tranquilamente sobre as mercadorias à venda, por exemplo nos tapetes e almofadas turcas. Ninguém lhes faz mal. Até sobre as campas dos cemitérios os vejo andar e aqui, nestes lugares de memória e devoção, também os alimentam. Aliás, os cemitérios são locais onde as pessoas passeiam e há miradouros, teleféricos, lojas e até restauração dentro destes espaços, o que demonstra apego aos antepassados, sem medo, repulsa, preconceito.

Em termos religiosos constato a existência de algumas Igrejas de culto cristão. Vejo signos de cruzes em Haghia Sophia (Istambul), em Éfeso (5),  Meryiemana (6) e em Selçuk (7) demonstrando respeito e tolerância pelos mesmos sinais.

Notas:

(1) Os Lusíadas / Luís de Camões, canto I, estrofe 50.

(2) Éfeso – Cidade do mundo antigo onde São Paulo proclamou as suas epistolas aos Efésios. A cerca de 6 km da antiga Éfeso, hoje território Turco situa-se Meryiemana. Trata-se do local onde alegadamente se encontra a ex-Casa da Virgem Maria. Consta que aqui veio a falecer (ou entrou em “dormição”). Na realidade após a morte de Cristo não teria condições de permanecer em Jerusalém e, segundo as palavras de Cristo, quando estava desfalecendo na cruz pediu a João Evangelista que tomasse conta da Mãe. Nesta deslocação da sua morada para a envolvência de Éfeso terá João escrito o seu Evangelho, ao lado da casa de Maria. Em memória foi aqui (actual localidade de Selçuk) construída uma grande Igreja no tempo do Imperador Justiniano (527-565). A mesma ainda perdura, embora muito incompleta mas com relevante valor arqueológico.

(3) Bodrum – hoje uma cidade essencialmente virada para o turismo, sobretudo no Verão, pelas suas águas tépidas, calmas e cristalinas entre os mares Egeu e Mediterrâneo. Corresponde à antiga cidade grega Halicarnasso de onde era natural Heródoto – conhecido como o pai da História e onde se encontrava localizada uma das sete maravilhas do mundo antigo, isto é, o grande Mausoléu do rei Mausolo, daí a origem do termo.

(4) Turquia Guia American Express, p. 17

(5) Éfeso, local onde S. Paulo escreveu e/ou leu a célebre carta aos Efésios.

(6) Meryiemana, local de veneração cristã e muçulmana, onde consta ter vivido a Mãe de Jesus Cristo, após a crucificação.

(7) Selçuk, local onde consta ter vivido S. João Evangelista.

Referências bibliográficas:

-CAMÕES, Luis de - Os Lusíadas. [Lisboa]: Ed. Expresso com o apoio Grupo Totta, vol. I, dir., coord., concep., exec. José António Saraiva, Mónica B. Penaguião et al. , 2003

-NACI, Keskin; KAZIM, Inanc -  Éfeso. Ankara: Leskin Color A. S., 2008.

-NICK, Inman; VASCONCELOS, Eduardo et al - Istambul Guia American Express. Londres: Dorling Kindersley Limited, 1998 ©. Porto:  Civilização Editores, Ldª, 1998

-NICK, Inman; SILVA, Joana Ferreira et al. - Turquia Guia American Express. Londres: Dorling Kindersley Limited, 2003 ©. Porto: Civilização Editores, Ldª Porto, 2003

Referências em linha acedidas em 30.12.2014:

-Haghia Sophia in


-Queda de Constantinopla in

8 comentários:

  1. Bela descrição amigo Alfredo.
    Sem dúvida que fiquei melhor elucidado- Obrigado.
    Feliz 2015 para si e todos os seus e um abraço.

    ResponderEliminar
  2. Obrigado caro Amigo Jorge,

    também para si, família e próximos um Ano muito Feliz.

    Abraço

    ResponderEliminar
  3. Caro Alfredo Ramos Anciões

    Tomando boa nota do que está descrito e bem, se acrescenta bastante a cultura de cada um. Depois de ler bem tudo, nada custa a crer que em determinada época, o entrelaçar desta cultura com a portuguesa, algo as tenha influenciado.
    Desejo Bom e Feliz Ano de 2015.
    Abraços

    ResponderEliminar
  4. Caro Daniel

    Obrigado pela visita. Acontece que esses pontos de contacto com a cultura turca, alguns provêm, em meu entender, de antes do encontro - Descobrimentos. Os contactos anteriores aos Descobrimentos eram feitos via terrestre. As invasões bárbaras de Leste para Oeste também terão tido influência na mistura de povos. Portugal está no fim da linha terrestre do continente euroasiático. Aqui vieram parar pessoas que deambularam à procura de alimentação, minerais e/ou empurrados por outros povos.

    Abraço e Bom Ano de 2015.

    ResponderEliminar
  5. "Boa noite Alfredo!
    Gostei muito da sua apreciação histórico-cultural da viagem que fez à Turquia.
    Acrescento que já no Império Romano circulavam comerciantes por todas as províncias desse Império e a actual Turquia fez parte do Império Romano.
    Quando estive no Egipto, também me disseram que tinha aspecto de turca.
    A Turquia tem um passado histórico-cultural riquíssimo, é um país que também quero um dia visitar.
    Informo que não consegui comentar isto directamente no seu Blogue".

    P. S. Comentário enviado por e-mail, dia 27.1.2015 pela professora de História Fernanda Henriques.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado caríssima professora pela sua participação.
      Cumprimentos
      AA

      Eliminar
  6. P. S. Esta Carta (aberta) aqui publicada foi resumida por duas vezes para a não tornar muito maçuda. A primeira versão incluía mais de uma dezena de fotos e texto mais longo. A Professora Fernanda Henriques (da USMMA) enviará também em anexo a 2ª versão com 6 fotos e o texto que mais interessa sublinhado a amarelo.
    Cumprimentos.
    Alfredo Anciães

    ResponderEliminar